sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Ele nunca disse eu te amo


Passos. O ritmo de passos. Ela conhecia o ritmo daqueles passos. Hesitantes, arrastados, livre de sutilezas. Olhou mais uma vez pela janela. Quantas vezes pode se olhar o mesmo cenário sem sentir que não há mais nada para se ver?


Quantas vezes pode se olhar para a mesma vida sem sentir que ela perdeu o sentido?


Ela sonhava em ser bailarina, mas nunca aprendeu a dançar. Queria ser trapezista, mas tinha medo de altura. Queria ir embora com ele, fechar os olhos e se abandonar aos sentidos. Ele. Não os outros. Passo largo, decidido. De uma gentileza arredia, daquela que não se perde em palavras e gestos grandiosos. Mas que está lá, sem a necessidade de explicação, e de palavras vãs como amor, coração e ternura. De um magnetismo tão forte que era como se, na presença dele, ela fosse toda retalhos. Pedaços de si mesma, indefinida e invencível. Dividida e completa. Pedaço de si mesma nele. Ele. Olhos verdes. Jaqueta de couro. Cheirava a tabaco e grama molhada. Um rabisco num guardanapo. Ela sabia que ele não podia ficar.


Não sei o que te prometer, o futuro é nosso até que você diga o contrário. Só venha.


Venha.


E ela quase foi. Mas parou, ponderou e avaliou. Não era assim que deveria ser. Príncipes não cheiram a tabaco. E ela não foi. Repetiu pra si. Não é assim que deveria ser.


Ele nunca disse eu te amo.


Rabiscou uma resposta.


Não.


Um dia, ela encontrou alguém. Sorriso fácil, rosas vermelhas, todo palavras e elogios. Passo hesitante, arrastado, livre de sutilezas. Boas maneiras, cheiro de colônia. Um bom homem.


Eu te amo.


E ela se convenceu que era assim que tinha de ser.


E agora se pergunta, a ouvir os passos hesitantes na soleira:


Onde estará a alma que ela abandonou num pedaço de guardanapo?



segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Clara


Ela gosta de lugares vazios
De dias cinzas
De paredes sem reboco e tinta
De verdades nuas e cruas
O som de unhas arranhando o quadro negro
Mantém os cabelos sobre a face
As sobrancelhas arqueadas
Selvagem
Intimidante
Unhas pintadas de preto
Bebe uísque duplo sem gelo
Como poucas
Como outras
Ainda assim, como mais ninguém

O nome é Clara
Uma leve ironia,
A subjetividade do destino
Nunca pôde ser donzela
Nunca pôde ser indefesa
A vida tornou impossível
Sonhar leves sonhos de papel
Sem que a água
Doce, pura e cristalina
Desfaça suavemente
A ilusão que se criou

Clara, seja forte
A vida é um jogo
O mundo um bueiro
Clara, minha cara
Não impeça as paredes de ruírem
Pesadas
Ásperas
Abrace o caos
E sinta na pele
O peso da escolha
De ser o que os outros não são
Indefinida
Indomável
e livre dos outros
mas prisioneira de si